domingo, 23 de abril de 2023

Aquilo que fica!

 O que uma pessoa deixa quando se vai?! 

Me fiz essa pergunta num domingo de manhã lindo de sol. Não que eu esteja triste, ou que alguém tenha partido, mas por algum motivo inexplicável me pus a pensar...o que fica quando alguém se vai?! 

Não estou falando das memórias, nem das pessoas, e nem do pesar... estou aqui pensando naquelas coisas práticas, aquelas miudezas, aquele monte de objetos, por vezes esquecidos em fundos de gavetas, que serão escarafunchados por familiares ou amigos e trazidos a luz. 

Cartas, chaveiros velhos, uma vela de um aniversário distante. Um embrulho guardado para reutilizar um dia desses. Cadernos pela metade, livros, canetas jogadas aqui e ali. Um punhado de cremes nos armários do banheiro, a escova de dente abandonada para sempre. 

E aqueles pequenos hábitos intrínsecos de cada um, as pequenas coisas escondidas, tudo é descortinado, revelado, esvaziado. Aquela roupa velha que a pessoa amava usar e aquelas novas que nunca foram usadas...tudo perde o sentido. 

Por vezes imóveis inteiros, cômodos inteiros, com seus móveis. Por fim, as plantas do jardim ficam abandonadas, os animais de estimação divididos entre parentes ou abandonados a própria sorte. E num piscar de olhos tudo aquilo que uma pessoa foi capaz de criar e de produzir se reduz a nada entre os dedos ansiosos - talvez zelosos - viscosos de pesar daqueles que ficam. 

Então, porque juntamos tanto? Porque trabalhamos tanto por mais e mais? Mais roupas, mais móveis, mais imóveis, mais de tudo e cada vez menos tempo. É uma lógica avessa e estranha a da vida como a conhecemos e como nos comportamos diante dela. 

Talvez o tempo resignifique as coisas. Talvez aprendamos num futuro distante, que o valor de fato de uma vida é o que fica mas não é palpável. É aquilo que não precisa ser desenterrado de gavetas...porque não está ali, está na memória, na história, na marca que deixamos nessa passagem por aqui. Algo dito, algo escrito, algo vivido, gravado, estampado, pintado. A arte de qualquer que seja a forma, como matriz de uma marca que é única que é exclusiva e rica. 


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Domingos de chuva

Domingos de chuva vem como um aval para o não fazer nada. É em domingos de chuva que, sem culpa, você simplesmente se deixa ficar. Derrama o corpo na cadeira, no sofá ou na cama e permanece na inércia vendo o tempo passar. 

Pega um livro ou liga a TV. Assiste um filme qualquer ou mergulha de cabeça num seriado por horas a fio. Não tira o pijama o dia todo, toma mais café do que deveria, come qualquer coisa, umas porcarias ou tira o tempo de fazer aquela comida gostosa e demorada. 

Nos domingos de chuva você tem a garantia de que ficar em casa é o melhor negócio e então se livra do peso daquela dinâmica social que diz que domingos de sol devem ser aproveitados ao máximo, com passeios, praia, amigos, família.

Domingos de chuva são aconchegantes, intimistas, serenos, calmos e sutis. Te obrigam a acalmar a mente e buscar dentro de si e do seu infinito particular um quê pra fazer ou não fazer. 

Domingos de chuva são caixinhas de possibilidades de autoconhecimento. É um pouco de você que surge de baixo da correria do dia a dia. 

Mas, num mundo de redes sociais de dias de sol, um dia de chuva pode trazer angústias, pode trazer um desespero para aqueles que não estão acostumados a ficar na sua própria companhia, a parar e curtir um momento de silêncio, de paz, de tranquilidade...de nada. 

Para mim é gostoso, o barulho da chuva no telhado, a certeza de que vou passar o dia curtindo a casa com o meu amor! Essa coisa gostosa de aquietar-se sem culpas. De saber que estamos em casa mas não estamos perdendo nada lá fora. Não poderíamos estar em outro lugar, nenhum passeio, nenhum trabalho externo. 

A grama não pode ser cortada, as árvores podadas, a parede não pode ser pintada, os exercícios físicos ao ar livre são suspensos. Diante da completa falta de possibilidades lá fora...eu curto muito estar aqui dentro. No meu mundo no meu momento, e tá tudo bem! Não é um dia perdido, pelo contrário. 

É claro que amo dias de sol, e domingos de sol. Amo passear, conhecer novos lugares e até mesmo aproveitar pra cuidar do jardim ou correr na rua. Mas num mundo sempre cheio de tarefas é a chuva que vem e freia tudo aquilo que não é essencial. As vezes desfaz planos, muda a rotina. 

Eu, deixo a chuva lavar a alma, limpar o céu, descarregar as energias, levar embora tudo o que estava acumulado aqui e ali, deixo a água correr livre lá fora enquanto olho pela janela e me deixo ficar, aqui, quietinha, sob o peso do nada. 

quarta-feira, 12 de abril de 2023

De novo aqui

 Existem lugares, assim como pessoas, que de forma inexplicável impactam nossas vidas e marcam de forma indelével o nosso ser e quando nos damos conta aquele lugar faz parte da gente, parte daquilo que vivemos, e mesmo que longe, ou completamente fora do habitual, é como se sempre estivéssemos estado lá. 

Para mim esse relacionamento estranho, essa sensação de pertencimento de um local do qual nunca pertenci de fato - ao menos não racionalmente nesta vida - é as Ruínas de São Miguel das Missões. 

O Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo é o que restou de uma das reduções jesuíticas, pertencente aos antigos sete povos das Missões. Localizada no noroeste gaúcho, na atual São Miguel das Missões, a redução foi iniciada por volta de 1687 quando o território pertencia aos espanhóis. Foi um local próspero, de cultura, artes, estudos e integração dos povos indígenas com os espanhóis. Também foi território de disputa entre espanhóis e portugueses e foi parcialmente destruída durante a guerra guaranitica em meados de 1756. 

Somente em 1925 começou sua recuperação no intuito de preservar a história da formação do Rio Grande do Sul e de seus primeiros habitantes. Foi tombado como patrimônio histórico pelo IPHAN em 1938 e em 1983 recebeu o título de Patrimônio Mundial da UNESCO. 

Eu era criança na metade da década de 90 quando a minha escola organizou uma viagem de estudos para as Missões. De minha parte não havia interesse algum em conhecer o local, confesso que naquela época, onde tudo o que se sabia do mundo era o que aparecia na TV ou o que se podia pesquisar na Barsa, eu não sabia exatamente o que estava indo conhecer. Mas o importante era a viagem, a noite viajando, os colegas, o dia de passeio fora dos muros do Colégio Estadual de  Primeiro e Segundo Grau Carneiro de Campos.

Fecho os olhos e posso sentir aquele dia até hoje. Lembro de descer do ônibus e procurar por um orelhão para ligar para casa e avisar que havíamos chegado. Na lateral externa do centro de atendimento ao turista, o orelhão preso a parede foi a linha que me comunicou com a minha família a mais de 300km de distância. Foi a primeira vez que fiz uma ligação desse tipo. 

Quando passamos os portões que dão acesso às Ruínas, foi uma sensação estranha, uma calma, uma paz e ao mesmo tempo me senti maravilhada com o que via. Era surreal tocar aquelas paredes, andar por entre as pedras que foram colocadas ali a tanto tempo. 

Me senti segura, pertencente. Ficamos ali para assistir o show de som e luzes que acontece todas as noites e que conta a história da redução. Era excitante fazer uma atividade à noite, com meus colegas e tão longe de casa. Foi incrível. 

Muitos anos depois eu sempre pensava em retornar, e no meu intimo mantinha a curiosidade de identificar se, de fato, aquela sensação diferente que eu lembrava de ter sentido na primeira visita, era apenas fruto de um cenário de descobertas e primeiras vezes de uma menina, ou se de fato existia um magnetismo ali. 

Eu retornei ja adulta e confirmei a sensação, e ao completar 34 anos, pisei pela terceira vez nessas terras e novamente me certifiquei de que esse sentimento de paz interior, de pertencimento, quase de aconchego, essa vontade de ficar, de olhar mais um pouco, de tocar mais uma pedra, caminhar para mais um canto, desvendar cada fenda e cada árvore é de fato real. 

Enfim não sei dizer o quê me chama, nem o porquê desse encantamento. Não consigo encontrar nem na minha história nem nas minhas raízes algo que justifique. Talvez seja a energia indígena, talvez o encantamento natural pela história e pelo que é antigo. Mas seja pelo motivo que for, esse lugar nessa cidade tão pequena e distante de casa, tem um pedacinho do meu coração e ricas memórias sensoriais que marcam sutilmente meu ser. 


terça-feira, 14 de março de 2023

O Anjo na Cama

 Das coisas que nunca gostei de fazer está a árdua e diária tarefa de arrumar a cama, para mim sempre foi um fardo sacudir as cobertas, esticar os lençóis, bater os travesseiros para que voltassem ao formato normal, endireitar as fronhas, e dobrar as cobertas. 

Parece simples e sei que muitas pessoas realizam essa tarefa ainda de olhos fechados pela manhã, num automático estica e puxa, como mágica, tudo está no lugar. Mas para mim nunca foi assim. 

Quando criança minha avó exigia que a cama fosse arrumada de imediato, as vezes eu levantava e ia até o banheiro antes, e se ela passasse pelo quarto, eu já ouvia "Denise, arruma a cama antes de sair do quarto!" Nem o xixi matinal tinha preferência...a cama arrumada em primeiro lugar! 

Talvez seja por isso que eu tenha tanta raiva de arrumar a cama. Além de ter que fazer antes de qualquer outra atividade, minha avó ainda exigia que a coberta cobrisse por completo a cama e os lençóis. Se uma pontinha de lençol estivesse aparecendo por de baixo da coberta eu teria de refazer tudo. Para uma criança, lidando com roupa de cama de casal, não era uma tarefa muito fácil, e confesso que muitas vezes eu acordava e adiava o levantar só para não ter que arrumar a cama. 

Sempre dormi em cama de casal junto com a minha mãe, e como ela levantava antes de mim, a cama impecavelmente esticada era minha tarefa. 

Sai da casa dos meus avós aos 17 anos e jurei que na minha casa a cama não seria prioridade. Era de uma alegria e de uma liberdade sem igual. Eu levantava pela manhã e ia para a faculdade sem nem pensar na cama. Chegava de noite e me enroscava nas cobertas e lençóis emaranhados que pareciam já ter o formato exato do meu corpo. 

A cama só recebia um trato no dia da troca dos lençóis ou quando eventualmente minha mãe vinha visitar. 

Dos 17 aos 27 alguns relacionamentos se passaram e a cama sempre foi uma questão. Eu não arrumava e a pessoa da vez era que dava jeito de arrumar ou de brigar comigo para que eu arrumasse. 

Aos 27 entrei num novo relacionamento e lá estava a cama por fazer. Eu sempre levantava depois e muitas vezes deixava a cama desarrumada, mas logo percebi que a pessoa da vez não gostava nada nada disso. Como eu passava a manhã toda em cada, comecei a arrumar aos 45 do segundo tempo, antes que ela chegasse do trabalho. 

Mas nós chegamos num acordo que me agradou, ao invés de esticar os lençóis e cobertas, eu poderia só dobra-los e deixa-los aos pés da cama. Isso me deixou feliz me pareceu mais prático e rápido, então comecei a fazê-lo com mais satisfação. 

De noite, antes de dormir, ela esticava os lençóis e todos ficávamos felizes. 

Mas com o passar dos anos, percebi que apenas dobrar as cobertas e lençóis não era o suficiente, pois ela sempre chegava e "terminava" de arrumar a cama batendo os travesseiros, puxando o lençol de baixo para que ele ficasse bem esticadinho na cama e recolocando entre os dois travesseiros a almofada decorativa que todas as manhãs eu deixava jogada no chão, embora tenha sido minha ideia comprá-la! 

Mas tudo mudou! 

Em uma noite de verão, já deitadas na cama, após o beijo de boa noite, repeti as palavras de sempre "Te Amo, boa noite, dorme com Deus e sonha com os anjinhos", ao invés de ouvir o "obrigada igualmente" de sempre, ela me disse: " sabe porque que tu tem que arrumar a cama todas as manhãs?! Porque se tu não arrumar o teu anjinho da guarda fica aqui na cama, porque como ele é o teu anjo, ele é preguiçoso igual a você, e se a cama estiver desarrumada, ele vai ficar aqui...tu vai sair sem ele!" Eu dei risada na hora e achei engraçada a ideia, e ela concluiu " nunca te disseram isso?! Que tem que arrumar a cama pro anjinho levantar?!" Diante da minha negativa ela ainda deliberou " mas é assim, e pra garantir tem que por a almofada no lugar, que aí ele não tem mesmo como ficar deitado no travesseiro!" 

Na manhã do dia seguinte me peguei arrumando a cama para que o anjo da guarda levantasse junto comigo e daquele dia em diante, sempre que tento sair do quarto com a almofada jogada no chão, acabo retornando e colocando a almofada no lugar...pra garantir né! 

E assim, aos 33 anos, uma explicação cheia de amor, crenças e carinho, me trouxe a consciência de que preciso arrumar a cama todas as manhãs, pra garantir aquela proteção angelical no meu dia! 

Hoje meu anjinho já pulou da cama e o seu?! 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Um salve aos desejos de Natal


Especialmente para você, meu amor Cris Lang! 

 Nunca imaginei, ou pensei, ou sequer fiz pedidos no Natal... talvez na infância 🤷🏻‍♀️ Não sei! 

Mas já faz um tempo que eu vivi a magia dos desejos de Natal se realizarem e desde então percebi que não são só os desejos de Natal que se realizam, mas sim todos aqueles bons desejos feitos de coração, por pessoas de bom coração ! Tudo aquilo que se quer com entusiasmo, com vivacidade, e sem prejudicar ninguém... tudo pode se realizar ❤️ 

Hoje... nesse dia que é super especial pra Nós, eu celebro a vida ao teu lado! Celebro e agradeço por ter te encontrado, por ter tido meu sonho de Natal realizado... e depois dele... foram tantos outros né ?! 

Neste Natal de 2020 eu sou pura Gratidão! Gratidão por te ter ao meu lado, pela nossa família, pelo nosso negócio, nossos clientes, nossa casa, nossas coisas todas... e em especial gratidão pela saúde ❤️ Pela parceria, cumplicidade e amor que existe entre nós! 

Gratidão pelas conquistas deste ano difícil mas que juntas enfrentamos com muita criatividade, comida 😜, corridas 🤷🏻‍♀️ , trabalho, companheirismo e amor! 

E... pra te agradecer pela pessoa maravilhosa, pela esposa incrível, pela mãe impecável que você é... eu tenho uma surpresa virtual 🎁 (pra combinar com esse 2020 que foi super virtual 😬)

Quer saber o que é?! 

Então vem me encher de beijos pra descobrir 😉

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Estações

 O nome que tem não se sabe, tão pouco sua idade, embora pareça jovem. 

Nas tardes de inverno se mantém crua e seca. Embala os dias frios em finos galhos. Na primavera carrega pequenas folhas verde escuras que enchem na velocidade da luz, e a cada alvorecer a tornam mais bela. Logo próximo ao verão pequenas bolinhas aparecem nas pontas de seus galhos e do dia pra noite abrem miúdas e frágeis cachos de flores rosa punk. 

Encantando os olhos daqueles que a olham, derrama suas flores no chão com o passar rápido dos carros na rua. Flores que correm ligeiras deixando o asfalto pontilhado de cor de rosa para em seguida depositarem-se calmas sobre a grama verde dos canteiros ou entre os desníveis e buracos do rejunte das calçadas. Ali quebram o cinza da obra dos homens com o suave arco ires da obra divina. 

Quando o outono chega com seus dias secos e amenos suas folhas ganham tons avermelhados como fogo que caem enchendo as valetas de sua tonalidade única. Caem carregadas de uma força que insiste em colorir os tristes blocos de pedra e asfalto que compõem nossas ruas. 

Entre tantas monocromáticas, ela embeleza solitária as quatro estações. Que sorte a nossa ser ela moldura da nossa janela! 

Olhos azuis acinzentados

 Os olhos azuis acinzentados gritam beleza cravejados em um rosto roliço de bochechas salientes. O cabelo ocre e ralo dá sinais de estresse emoldurando o rosto cansado, que se mantém firme sobre um corpo desproporcional que balanceia cocho para o lado direito. O peso em excesso cansa as pernas curtas e os pés pequenos. 

No conjunto um projeto criado para encantar com seus olhos azuis acinzentados. Na prática, pobres olhos perdidos num emaranhado de massa cansada, que briga para se sustentar sobre os pés! 

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Na noite escura

Devaneios

Na solidão da noite escura todos os pensamentos crescem, ganham formas extraordinárias e se tornam tão imensos que são capazes de nos engolir. Assim como morcegos e vampiros, se aproveitam das sombras, do breu, para abrir os olhos e virarem gigantes.
Sejam bons ou ruins, sensatos ou não, os pensamentos à noite parecem incapazes de se apequenar e muito menos de dormir. No silêncio absoluto eles vagam numa realidade paralela. À noite nossos maiores medos aparecem para discutir a relação, querem desenvolver suas teorias, dialogar sobre acontecimentos e analisar os passos futuros!
No meio da escuridão, por vezes, são os nossos maiores sonhos que chegam pra festa, colocam sorriso nos nossos rostos ocultos sob a falta de luz, e as deslumbram em nossa imaginação em projetos mirabolantes, em histórias incríveis e em energia para dar rumo novo ao dia que vai começar! Parece que tudo será possível quando o dia chegar...
Também nas sombras da noite escura aparecem memórias, por vezes com lágrimas e nostalgia, As vezes arrependidas por vezes felizes.
Mas o certo é que todos os pensamentos ocultos nas madrugadas já não são os mesmos quando o dia volta a raiar. Como criaturas ocultas nas trevas eles se dissipam com o primeiro raio de sol, e toda dor se perde, toda a angústia se vai, todas as atitudes friamente calculadas no calar da noite são completamente esquecidas. Na aurora morrem também os planos astutos para a realização dos sonhos, as boas iniciativas que planejamos passo a passo no anoitecer.
Como uma chuva de realidade, como luz no fim do túnel, como um empurrão do universo para te manter agarrado aos afazeres do dia a dia comum de qualquer cidadão... o dia vem te tirar tudo o que a noite permitiu florescer dentro da sua imaginação... como que para manter a ordem das coisas, o dia trás o bom senso da necessidade de levantar, se arrumar, comer, trabalhar... enfrentar cada hora do dia com seus planos pré agendados, pré destinados e organizados. Um corre corre que te impede de pensar em tudo que for mais profundo... e então... você deixa pra trás, debaixo do travesseiro, emaranhado nos lençóis todos os anseios como se nada tivesse passado pela sua cabeça... e abre os olhos para um nove e lúcido dia de sol!

segunda-feira, 23 de março de 2020

Na memória!

Quando o primeiro caso de Covid19 surgiu na nossa pequena cidade, eu pensei imediatamente nos meus avós! E em como devemos protegê-los de tudo isso. Ao longo do dia exaustivo de trabalho, pensei neles o tempo todo. Ansiosa para vê-los, mas sabendo que não poderia tocá-los. Resolvi trocar a visita pela ligação ao final do dia.

Nos minutos ao telefone dei severas recomendações. Minha avó com a voz embargada exclamava “Meu Deus...meu Deus! Mas vamos rezar, e ficar em casa, vai ficar tudo bem”. O medo se transforma em fé absoluta, e tem uma beleza indescritível nessa força e nessa coragem que vem dos seus 80 anos de vida. Pouco antes de encerrar a conversa, eu no topo dos meus 30 anos, disse firmemente “A coisa é muito séria vó! Eu nunca, nos meus 30 anos, vi nada igual! Nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer!”. Acreditando no impacto das minhas palavras e na força dos trinta anos de experiências... recebi como resposta uma frase que nunca havia ouvido antes! “ Mas eu, nos meus 80 também não!”
E nesse momento eu percebi que vivíamos um momento único. Uma situação maior que os meus 30 e que os 80 da minha avó... maior do que qualquer humano poderia imaginar!

No dia seguinte, encomendei as comprar do mercado pela internet, as minhas e as deles. Solicitei a entrega na casa dos meus avós e me desloquei até lá para buscar a minha parte das compras e para pagar.

Apenas uma quadra separa nossas casas. Fui tomando todos os cuidados, levando comigo uma toalhinha descartável e um desinfetante em um borrifador spray. Quando cheguei o portão da casa estava trancado, abri com a minha chave e entrei. Dali já podia ver, através do vidro da porta da frente,  o topo da cabeça do meu avô sentado na cadeira ao redor da mesa da cozinha. Quando me viu, ele abriu a porta sorridente. Minha avó sentada ao seu lado também sorriu e eles me convidaram para entrar! Naquele momento eu tive que ser forte para negar o abraço, o beijo carinhoso. Entrei mantendo distância, sem encostar em nada. Fiquei de pé o tempo todo, e conversei a distância.

Logo optamos por ir para a varanda da casa, um local mais arejado, relativamente longe da calçada. Meu avô sentou em uma cadeira, minha avó em outra. Eu sentei no chão longe deles e minha mãe que mora no andar de baixo, havia subido e também estava sentada no chão longe de mim e deles. Essa cena causava estranhamento pela distância entre nós, ver-nos assim despertava dúvidas infinitas sobre o momento que vivemos e sobre o futuro próximo. Mas nada traria mais realidade pra aquele momento do que a chegada das compras do mercado.

Meus avós já acharam engraçado poder fazer as compras pelo celular. E estavam prestes a buscar o dinheiro quando eu disse que pagaria pelo cartão para não terem que mexer no dinheiro. Quando a kombi parou na frente de casa eles se levantaram, eu pedi que mantivessem distância. Quando o entregador desceu com duas caixas, luvas nas mãos e máscara no rosto, meus avós paralisaram, olhavam com ar de incertezas. Pela primeira vez, o que a dias eles viam apenas na TV  , estava acontecendo ali, na varanda da casa deles.

Retirei as coisas das caixas pedindo para que eles não encostassem em nada. Paguei com o cartão e o entregador saiu. Seguindo seus passos eu fui desinfetando tudo, as maçanetas, e por fim as compras. Quando comecei a passar o pano com desinfetante nas compras, pude ver o olhar incrédulo deles. A surpresa, o medo, a incerteza. Parados na soleira da porta eles tinham os olhos estalados, úmidos por trás dos óculos de grau. O silêncio pairava no ar. Me olhavam sem nada dizer. Como se fosse necessário o mais absoluto silêncio para absorver aquele momento inacreditável de filme de terror.
As frutas colocadas na cuba da pia da cozinha, mergulhadas na mistura de água e água sanitária. As embalagens limpas sobre a mesa. Tudo aquilo trazia uma atmosfera de apocalipse.

Nesse ato simples, nessas coisas do cotidiano profundamente alteradas pela presença do inimigo invisível, é que se percebe a força do que estamos enfrentando.

O que vi no olhar deles nesse dia, jamais sairá da minha memória! Foi único! Foi intenso perceber que mesmo com toda a vida que já passou pelos seus olhos, mesmo com tudo o que já viram e vivenciaram, o simples ato de fazer compras pudesse causar tanta estranheza.

Sem beijos e sem abraços me despedi com um “Eu amo vocês!” E com a certeza de ter cumprido meu dever naquele dia e naquele momento!

sábado, 21 de março de 2020

Pânico - Ele está entre nós !

Era uma quarta feira como outra qualquer na pequena cidade simpatia. Pouco mais de 15.000 habitantes seguindo suas vidas nas entranhas do Rio Grande do Sul. Num cantinho cercado por morros de todos os lados, a sensação de segurança pairava no ar.

As crianças corriam pelos corredores das Escolas ao som do sinal para o recreio. Os trabalhadores a passos largos entravam e saíam de seus postos de trabalho. As donas de casa se envolviam com as panelas para o almoço. Os jovens ocupavam as praças. E os idosos se divertiam em rodas de chimarrão nos Postos de Combustível, ao redor das mesas de jogatina nos botecos, e tomando sol em grupos nos bancos da praça. Tudo seguia seu curso natural... apenas um dia qualquer!

Sabedores da situação do coronavírus em outras localidades do país, os Serafinenses humildemente acreditavam que nada tiraria a paz das nossas ruas amáveis e dos nossos lindos Castelos.

O que ninguém sabia era que já a cerca de uma semana, o inimigo nos rodeava. Aderindo aos objetos aqui e ali, passando no aperto de mãos dos conhecidos, no amigável tapinha nas costas. Seguindo viagem nos trocos guardados nas carteiras, e aos poucos ocupando espaços por todo lugar. Desonesto o vírus que ataca pelas costas, silencioso, potente, invisível.

Mas naquela quarta feira, para nós, o vírus ganhou um nome e um rosto. Itelvino Mezzomo, o senhor de 63 anos conhecido por toda a comunidade, passou a ser a imagem do vírus entre nós! Internado em estado grave, travando uma batalha pela sua própria vida, ele trouxe o pânico e acendeu o sinal de alerta na nossa comunidade .

Repentinamente não éramos mais pequenos, não éramos mais um município simpático e esquecido. Éramos, em poucas horas, mais uma estatística. Mais um caso. Mais um número no painel do Coronavírus. O primeiro caso da região.

E desde então deixamos de ser quem somos, para fazer parte de um filme de terror. Uma filme de guerra. Uma luta travada contra um inimigo mortal, que nos torna frágeis e vencíveis. Mas também uma dura batalha contra a ignorância, contra a estupidez, contra o descaso e o egoísmo que matam antes mesmo do vírus!

Apavorados correram as compras. Alguns com máscaras, outros com luvas. Avançaram no álcool gel.  Buscaram não se aglomerar, mas se abraçaram nos amigos. No mercado só um por vez pode entrar, mas na fila de espera se tocam e se empuleram. Os idosos, como grupo de risco, ao invés de se fecharem em casa atendendo ao apelo dos sistemas de saúde, correm aos habituais pontos de encontro para conversar com os amigos sobre o Sr Itelvino. E assim... na contramão das orientações, se expõem ao risco.

Com lágrimas nos olhos fechamos nossos comércios. Nos retiramos em nossas casas sem saber quando e como poderemos voltar.